Eis-me. Sophia de Mello Breyner Andresen

Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque. Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

És a terra e a morte. Cesare Pavese

És a terra e a morte.
A tua estação é a obscuridade
e o silêncio. Não existe
nada que, mais que tu,
esteja tão longe da luz.
Quando pareces acordar
és somente dor,
ela está nos teus olhos e no teu sangue
mas não a sentes. Vives
como vive uma pedra,
como a terra dura.
E cobrem-te sonhos,
movimentos, queixas,
que ignoras. A dor,
como a água de um lago,
treme e cerca-te.
Há círculos na água.
Tu deixas que eles desvaneçam.
És a terra e a morte.

Cesare Pavese

Se partires, não me abraces. Mª do Rosário Pedreira

Se partires, não me abraces – a falésia que se encosta

uma vez ao ombro do mar quer ser barco para sempre

e sonha com viagens na pele salgada das ondas.
Quando me abraças, pulsa nas minhas veias a convulsão

das marés e uma canção desprende-se da espiral dos búzios;

mas o meu sorriso tem o tamanho do medo de te perder,

porque o ar que respiras junto de mim é como um vento

a corrigir a rota do navio. Se partires, não me abraces –

o teu perfume preso à minha roupa é um lento veneno

nos dias sem ninguém –longe de ti, o corpo não faz

senão enumerar as próprias feridas (como a falésia conta

as embarcações perdidas nos gritos do mar); e o rosto

espia os espelhos à espera de que a dor desapareça.
Se me abraçares, não partas.

Mª Rosário Pedreira in O Canto do Vento nos Ciprestes

Poema XX. Eugénio de Andrade

Não, não é ainda a inquieta

luz de março
à proa de um sorriso,
nem a gloriosa ascensão do trigo,a seda de uma andorinha roçando
o ombro nu,
o pequeno e solitário rio adormecido
na garganta;não, nem o cheiro acidulado e bom
do corpo depois do amor,
pelas ruas a caminho do mar,
ou o despenhado silêncio

da pequena praça,
como um barco, o sorriso à proa;

não, é só um olhar.

Eugénio de Andrade, in Branco no Branco

Explicação. Cecília Meireles

O pensamento é triste; o amor insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente
guardo o resto para mais tarde.
Deus não fala comigo – e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce …
– espero a minha própria vinda.
(Navego pela memória
sem margens.
Alguém conta a minha história
E alguém mata os personagens.)

Cecília Meireles

Palavras. Rosa Lobato de Faria

É costume atirá-las sobre o medo.
Dizê-las sem pudor sobre o palco da noite
com grandes gestos gritos e lágrimas.
Com elas percorremos
os oblíquos caminhos
que a solidão conhece.
Com elas ardilosos enganamos a alma.

Mas são as outras
as claras as fugazes
as tímidas as doces
as pequenas palavras
que salvam os amantes.

Rosa Lobato de Faria

Grandes. Álvaro de Campos

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto: Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim.

Álvaro de Campos

Qual tem a borboleta por costume, Luís de Camões


Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agore se consume,

Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, Aónia bela;
E abraso-me por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;

Porém, não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glória maior, está contente.

Luís de Camões

Não sou a areia. Lya Luft

carkeek-dawn-water1-med

Não sou a areia
onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério
A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos
a sério.

Lya Luft

Sou de vidro. Lídia Jorge

Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita

Lídia Jorge

Sou de vidro. Lídia Jorge

Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro

Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido

Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita

Lídia Jorge

adeus. Eugénio de Andrade

Esferagrafica-Mandy-Disher-Foto-04

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou
não chega para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor…,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza de que todas as coisas
estremeciam só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.

Eugénio de Andrade

Ausência. Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

Quadrilha. Carlos Drummond de Andrade

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili,
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

Adminimistério. Paulo Leminski

Quando o mistério chegar,
já vai me encontrar dormindo,
metade dando pro sábado,
outra metade, domingo.
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

Paulo Leminski

fingir que está tudo bem. José Luís Peixoto

fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto

A casa. Mia Couto

Sei dos filhos

pelo modo como ocupam a casa:

uns buscam os recantos,

outros existem à janela.

A uns satisfaz uma sombra,

a outros nem o mundo basta.

Uns batem com a porta,

outros hesitam como se não houvesse saída.

Em mim ecoa a voz

que, à entrada, se anuncia: cheguei!

E eu sorrio, de resposta: chegou?

Mas se nunca ninguém partiu…

E tanto em mim

demoram as esperas

que me fui trocando por soalho

e me converti em sonolenta janela.

Agora, eu mesmo sou a casa,

casa infatigável casa

a que meus filhos

eternamente regressam.

Mia Couto, ‘A casa’, in 𝘛𝘳𝘢𝘥𝘶𝘵𝘰𝘳 𝘥𝘦 𝘤𝘩𝘶𝘷𝘢𝘴

Ilustr. Snezhana Soosh

Ofício. Gastão Cruz

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira

Gastão Cruz

Escarpas, Assírio & Alvim, 2010

A tolerância exige a reciprocidade. Joaquim Manuel Magalhães.

A tolerância exige a reciprocidade.
«Tenho tão presente
a grande dor» (Camões).

Um celerado pénis um torso
a clavícula parva de argumento,
nele o monopólio não intimava,
voga numa carapaça de trégua e linho
fluvial, em brejo de polimento.
Inculcaria turgidez a um impotente.

Melros em voo rasante.
A ilharga na polpa de cada dedo.
O meu rancor prega nele uma herança
de alevanto. Um adeus insensato
no índice da ternura.



joaquim manuel magalhães
canoagem
relógio d´água
2021

Águas novas. A.M. Pires Cabral

Além de fornalhas, a noite também pode
ser um cadeirão onde repouso,
revolvendo na boca os caroços do tempo
como rebuçados de mentol,

sentado de perfil contra a luz fria
que vem pela janela, comparável
a um peixe que, sequestrado num charco,
espera libertar-se assim que venham
águas novas de Novembro.


a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015

O navio de espelhos. Mário Cesariny

O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
A sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

Mário Cesariny, in “A Cidade Queimada” assírio & alvim, 2000

em forma de poema. Mário Cesariny.

dou os meus prantos às procelas
para que cessem em me deixem
dou os meus sonhos às estrelas
para que os meus sonhos não se queixem

fico só como o lobisomem
na estrada sem forma e sem fundo
meus sonhos no ar dormem dormem
à espera da manhã do mundo

vê tu se nesta alegoria
descobres porque estou inteiro
e nunca terei agonia
sem fartar meus sonhos primeiro

Mário Cesariny, in “manual de prestidigitação” assírio & alvim, 2005

Engoli. Herberto Helder

Engoli
água. Profundamente: – a água estancada no ar.
Uma estrela materna.
E estou aqui devorado pelo meu soluço,
leve da minha cara.
O copo feito estrela. A água com tanta força
no copo. Tenho as unhas negras.
Agarro nesse copo, bebo por essa estrela.
Sou inocente, vago, fremente, potente,
tumefacto.
A iluminação que a água parada faz em mim
das mãos à boca.
Entro nos sítios amplos.
– O poder de reluzir em mim um alimento
ignoto; a cara
se a roça a mão sombria, acima
da camisa inchada pelo sangue,
abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli
água. A mãe e a criança demoníaca
estavam sentados na pedra vermelha.
Engoli
água profunda.

Herberto Helder, in “A faca não corta o fogo” assírio & alvim, 2008

Perguntas de um operário letrado. Bertolt Brecht.

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sózinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitòria.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas

DIFICULDADE DE GOVERNAR

Dificuldade de Governar1.
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2.
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3.
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4.
Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

Bertolt Brecht, in “poemas” presença, 1976
trad. Sylvie Deswarte, Arnaldo Saraiva

Restauração. Inês Dias

Risquei o último fósforo
e estou agora vazia,
não esperando sequer
o deserto. Posso de novo
sublinhar os livros
sem pensar noutros olhos,
numa vontade que não coincida;
como quem se despe
de portas abertas, luzes acesas,
buracos na roupa,
indiferente ao desejo
de vizinhos e espelhos.

Sou finalmente o único fantasma
da minha vida inteira.


Inês Dias, in “Um raio ardende e paredes frias” averno, 2013

Monotonia. Irene Lisboa

Começar, recomeçar, interminamente repetir um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in-
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver…
Andar como os dementes pelos cantos a repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã-
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.


Monotonia. Arte, vida…
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar.
Que te manejarei hábil e serena.
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.


In Um Dia e outro Dia… Outono Havias de Vir Latente, Triste

imagem aqui

As pessoas sensíveis. Sophia de Mello Breyner Andresen

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas


O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo

Porque não tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra


“Ganharás o pão com o suor do teu rosto”
Assim nos foi imposto
E não:
“Com o suor dos outros ganharás o pão”


Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito


Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Não sei como dizer-te que minha voz te procura. Herberto Helder

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.


Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.


Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.


In A Colher na Boca

Fragmentos. Nuno Júdice

1
Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, dura, te pode atingir
2
Algo de visível perpassa
nos limites do ser.
3
De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.
4
Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.
5
(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim…)
6
O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.
7
No último fragmento, fixa
o efémero e repousa.


In Meditação sobre Ruínas

Paraíso. David Mourão-Ferreira

Deixa ficar comigo a madrugada,

para que a luz do Sol me não constranja.

Numa taça de sombra estilhaçada,

deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,

onde eu ouça o estertor de uma gaivota…

Crepite, em derredor, o mar de Agosto…

E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho

que acendas, para tudo ser perfeito,

à cabeceira a luz do teu joelho,

entre os lençóis o lume do teu peito…

Podes partir. De nada mais preciso

para a minha ilusão do Paraíso.

Paraíso In “Infinito Pessoal”, 1959-1962

Comigo me desavim. Sá de Miranda

Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.
Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crecesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meo espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda

O vagabundo do mar. Manuel da Fonseca


Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré…
Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia…
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

Manuel da Fonseca

imagem aqui

A concha. Vitorino Nemésio


A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.


Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.


E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.


A minha casa… Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio

imagem: Vladimir Kush, Pearl

Arte poética. Adília Lopes.

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Adília Lopes, in ‘Um Jogo Bastante Perigoso’

Restauração. Inês Dias.


Risquei o último fósforo
e estou agora vazia,
não esperando sequer
o deserto. Posso de novo
sublinhar os livros
sem pensar noutros olhos,
numa vontade que não coincida;
como quem se despe
de portas abertas, luzes acesas,
buracos na roupa,
indiferente ao desejo
de vizinhos e espelhos.

Sou finalmente o único fantasma
da minha vida inteira.


Inês Dias, in “Um raio ardende e paredes frias”, Averno, 2013

(imagem pexels-pnw-production-8250990-edit wordpress)

Começo. Rui Pires Cabral

Vejo-te um pouco como se já não houvesse

uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí

por todo o lado, onde quer que se respire, dentro

dos próprios frutos. É o começo da noite

e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:

porque escolhemos tão pouco

aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas

a tua história – à mesa da cozinha, quase um espelho,

quase uma razão.  As minhas canções preferidas

pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia

que te vestias com elas. E no entanto

como se apressaram as grandes florestas a invadir

as gavetas, como misturaram as raízes

no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral, A Super-Realidade, Língua Morta, 2011

(imagem pexels-pnw-production-8250990-edit wordpress)

Poema dos braços nus das mulheres. António Gedeão.


Como o dia estivesse muito quente
as mulheres saíram de casa e foram à sua vida
com blusas sem mangas.
A carne dos seus braços erguidos ao alto para alcançarem as argolas do autocarro


eram veios de luz voluptuosa e cálida.
Apelo de escultor
que esculpe trauteando melodias.
Iam todas afogueadas de calor,
de calor feminino,
e por isso eram largas as cavas das suas blusas
e delas emergiam os braços levantados
para alcançarem no alto as argolas do autocarro.


Era com aqueles braços nus,
desprendidos das argolas do autocarro,
que aquelas mulheres na hora permitida,
cingiam e apertavam
os corpos horizontais dos seus companheiros.


Mas não era nisso que elas iam a pensar.
Elas iam a pensar no seu trabalho quotidiano,
no ir e vir,
no andar a correr,
no cozinhar,
nas compras,
no emprego,
no dinheiro que não chega,
e pensavam, com os olhos parados e distantes,
enquanto se agarravam às argolas do autocarro,
noutra vida melhor,
sem ir e vir,
sem andar a correr,
sem horas para isto e para aquilo,
livres,
livres,
livres e independentes,
para então cingirem e apertarem nos seus braços nus
os corpos horizontais dos seus companheiros.


António Gedeão

(escultura Rejuvenation by Gaylord Ho)

Eficácia. Inês Lourenço

Os novos campos de extermínio
são servidos ao jantar
pelos canais noticiosos. A cólera
e a malária entre Goma e Munigi
acometem-nos na impotência e no remorso
da toalha, cientes que ficamos
da desidratação e dos dejectos
e da dificuldade de encontrar a veia
num moribundo. No sofá do nosso apartamento
passamos às posições dos sérvios
na Bósnia e lateja-nos nos ouvidos
o efeito da limpeza étnica,
ao som familiar e eficaz
da nossa máquina de lavar louça.

Inês Lourenço, in  Os Pecados Predilectos

Conserto a palavra. Daniel Faria

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio

Restauro-a

Dou-lhe um som para que ela fale por dentro

Ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa

Reunida numa forma comparada à lâmpada

A um zumbido calado momentaneamente em exame

Ela não se come como as palavras inteiras

Mas devora-se a si mesma e restauro-a

A partir do vómito

Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza

Como um homem nadando para trás

E sou uma energia para ela

E ilumino-a.

Daniel Faria, in “Homens que São como Lugares Mal Situados”

O que é um encontro. António Ramos Rosa

O que é um encontro 

breve e interminável sem um adeus final 

um encontro é uma viagem fora do mundo 

no mundo que nunca é verdadeiramente real 

na fantasia ansiosa das palavras vibrantes 

nunca é o que é 

entre

o que é e não é 

imaginária e vocálica 

fora da sintaxe convencional 

no interior de uma galáxia do vento 

no espaço branco de uma alegria sem termo 

no ar das palavras na respiração de uma laranja 

António Ramos Rosa

Este poema é absolutamente desnecessário. António Ramos Rosa

Este poema é absolutamente desnecessário
pela simples razão de que poderia nunca ser escrito
e ninguém sentiria a sua falta
Esta é a sua liberdade negativa a sua vacuidade dinâmica
e o movimento da sua abolição
a partir do seu vazio inicial
Mas qual é a sua matéria qual o seu horizonte?
Traçará ele uma linha em torno da sua nulidade
e fechar-se-á como uma concha de cabelos ou como um útero do nada?
Ou será a possibilidade extrema de uma presença inesperada
que surgiria quando chegasse a essa fronteira branca
que já não separaria o ser do nada e no seu esplendor absoluto
revelaria a integridade do ser antes de todas as imagens
a sua violência inaugural a sua volúvel gestação?

António Ramos Rosa Deambulações Oblíquas. Quetzal, 2001.

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos. Daniel Faria.

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse
Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor
Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados
Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue
Na água corrente
Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar.

Daniel Faria, in Homens que são como Lugares mal Situados

Nem nos defende a ausência. José Augusto Seabra

Nem nos defende a ausência:
é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.

Nem nos salva a desculpa
de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.

Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.

A bem ou mal, poetas.
Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.

Homens que são como lugares mal situados. Daniel Faria

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria aqui

Homens que são como Lugares mal Situados, Daniel Faria
1ª Edição: Porto: Fundação Manuel Leão, 1998.
Chão da Feira, Belo Horizonte, 2016