Trova do vento que passa. Manuel Alegre

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio — é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Manuel Alegre

imagem aqui

Passos da Cruz – II. Fernando Pessoa

Há um poeta em mim que Deus me disse…
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efémera e espectral ledice…

Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos…
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse…

Florir do dia a capitéis de Luz…
Violinos do silêncio enternecidos…
Tédio onde o só ter tédio nos seduz…

Minha alma beija o quadro que pintou…
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e voo…

Fernando Pessoa, poemas ortónimos publicados em vida (Centauro, 1, outubro-dezembro de 1916)

Quando vier a Primavera. Alberto Caeiro

Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro in Poemas inconjuntos

Autopsicografia (1932). Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

(Presença, 36, novembro de 1932, p. 9)

Impressões do Crepúsculo – I. Fernando Pessoa

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minh’alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem um som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo triste e errante,
És para mim como um sonho —
Soas-me sempre distante…

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.

Fernando Pessoa, poemas ortónimos (A Renascença, fevereiro de 1914, p. 11)

Um céu e nada mais. Ana Luísa Amaral

Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.
Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,
nem inocência. Um céu e nada mais.

Ana Luísa Amaral, in “Às Vezes o Paraíso”

Aos filhos. Manuel António Pina

Já nada nos pertence,
nem a nossa miséria.
O que vos deixaremos
a vós o roubaremos.

Toda a vida estivemos
sentados sobre a morte,
sobre a nossa própria morte!
Agora como morreremos?

Estes são tempos de
que não ficará memória,
alguma glória teríamos
fôssemos ao menos infames.

Comprámos e não pagámos,
faltámos a encontros:
nem sequer quando errámos
fizemos grande coisa!

Manuel António Pina, in “Um Sítio onde Pousar a Cabeça”

Poema em Linha Reta. Álvaro de Campos.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Poesias dos Outros Eus.  Álvaro de Campos

Tempo. Mário Quintana

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.

Mário Quintana

Páscoa. Miguel Torga

Um dia de poemas na lembrança
(Também meus)
Que o passado inspirou.
A natureza inteira a florir
No mais prosaico verso.
Foguetes e folares,
Sinos a repicar,
E a carícia lasciva e paternal
Do sol progenitor
Da primavera.
Ah, quem pudera
Ser de novo
Um dos felizes
Desta aleluia!
Sentir no corpo a ressurreição.
O coração,
Milagre do milagre da energia,
A irradiar saúde e alegria
Em cada pulsação.

Miguel Torga, in Diário XVI

Sobre esta página. João de Melo

Há quem não leia para além do que vai escrito. 
Tudo tem de ser literal: chão rua noite e casa, 
cama mesa e roupa lavada. Nem silêncio nem grito, 
consoante as penas que se transporta em cada asa. 

Guarda o talento para ti, não mudes de página. 
Há gente capaz de se negar à própria evidência 
e de te acusar de mundos e reinos criados por álgida 
imaginação, de asno com excesso de inteligência. 

A nada e ninguém repliques. O segredo 
só a ti pertence, tão único como tu. Lês 
por dentro o que escreves, sozinho na noite 
qual condenado às trevas do seu degredo. 

Caminha sobre a página. Mudarás não o sentido 
nem o ritmo nem a música nem a voz do poema, 
e sim o verbo que te levará à vista do infinito. 

João de Melo

Os leitores. João de Melo.

Não creio que haja olhos tão evidentes
nem rostos mais tranquilos.
Ante o franzido do poema ou o torso
rebuscado de uma prosa,
também não existirá um tão devoluto
coração como o dos leitores. Se não os
amamos é porque os não conhecemos.
Ou serão eles talvez o inverso do amor
pelo conhecimento amargo dos livros.

Seres assim professam a bondade
de existirem lendo-nos sentados ao sol
para cá e para lá de chapéu na cabeça,
tão cedo ligados ao chão da escrita
como ao embalo do sono numa rede.

João de Melo.

Pedra Filosofal. António Gedeão

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão

Desenho. Cecília Meireles

Traça a reta e a curva,
a quebrada e a sinuosa
Tudo é preciso.
De tudo viverás.

Cuida com exatidão da perpendicular
e das paralelas perfeitas.
Com apurado rigor.
Sem esquadro, sem nível, sem fio de prumo,
traçarás perspectivas, projetarás estruturas.
Número, ritmo, distância, dimensão.
Tens os teus olhos, o teu pulso, a tua memória.

Construirás os labirintos impermanentes
que sucessivamente habitarás.

Todos os dias estarás refazendo o teu desenho.
Não te fatigues logo. Tens trabalho para toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.

Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais.

O tempo. Mário Quintana.

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.

Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª-feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Mário Quintana

Integrações. Pablo Neruda.

Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.

Perto de mim com teus hábitos,
teu colorido e tua guitarra
como estão juntos os países
nas lições escolares
e duas comarcas se confundem
e há um rio perto de um rio
e crescem juntos dois vulcões.

Pablo Neruda

As boas intenções. Amalia Bautista

Esta manhã saí de casa

com várias intenções, todas muito firmes:

a de devorar o mundo,

a de me tornar invulnerável

ou invisível,

de acordo com as circunstâncias,

a de negar tudo o que quero negar,

a de me afirmar.

E mais uma ainda, acima das outras,

acima de todas:

procurar-te e dizer-te que te amo.

Mas não te encontrei.

Amalia Bautista

A melancolia da literatura. Cristina Peri Rossi

Disse-me então: tenta escrever algo

alegre,

algo reconfortante,

algo que possa ajudar uma pessoa

que tem cancro ou que foi atropelada por um carro

Pus-me a pensar

Pensei durante uma tarde inteira

e não me ocorreu nada de alegre

ou estimulante

Isto foi o que se deve ter passado com Shakespeare

e com Dostoievski,

com Proust e Kafka

por isso as pessoas não lêem

Só os deprimidos lêem

para confirmarem a sua depressão.

Cristina Peri Rossi

O homem que caminha. Amalia Bautista

O homem que vejo agora a andar pelo passeio

é o homem que não sei se vai ou vem.

Se chegará aqui,

se vem para partir ou talvez para ficar,

se é que vem.

Caminha de perfil, como um egípcio,

e por isso não identifico o sentido dos seus passos.

Para mim ou para longe.

Para mim ou para nunca.

Eu poderia esperar

ou descer à rua e pôr-me à sua frente.

Mas, feitas as contas, para quê

se nunca suportei os indecisos.

Fechei a minha porta dando duas voltas à chave.

Metade. Ferreira Gullar

Que a força do medo que eu tenho,

não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito

não me tape os ouvidos e a boca.

Porque metade de mim é o que eu grito,

mas a outra metade é silêncio…

Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste…

Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada

mesmo que distante.

Porque a metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor,

apenas respeitadas,

como a única coisa que resta

a um homem inundado de sentimentos.

Porque metade de mim é o que ouço,

mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz

que eu mereço.

E que essa tensão

que me corrói por dentro

seja um dia recompensada.

Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,

a outra metade eu não sei.

mais do que uma simples alegria

para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.

Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade

para fazê-la florescer.

Porque metade de mim é platéia

e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.

Porque metade de mim é amor,

e a outra…

também.

Ferreira Gullar

O caminho é o poema. José Anjos

É uma linha lenta
sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
é uma linha lenta
sempre recta, sempre certa
incerta
para onde quer que se vire
o caminho é como o poema
revela-se e auto destrói-se nesse preciso momento
torna-se desnecessário,
irrepetível, em vício ermo de um deus obsoleto
O caminho é como o poema
depois de percorrido até ao fim, torna-se outro
e outro e outro e outro e outro
até chegar aqui, a este lugar onde acabo
e parto com uma única certeza
a de que não poderei continuar em frente
por isso paro.
paro por uns instantes e olho para trás,
não para fugir
mas apenas para contemplar uma última vez
as ruínas os poemas as portas que escolhi
agora são ombros sem cabeça sem carne sem sombra
são esqueleto cimento
nuvem noite e silêncio seco, morto
são pedaços de sol morto com vários nomes que trago comigo
cabelos e pele
pessoas inteiras que não consegui recuperar
da condição mágica e cruel do sonho
por mais que as segurasse
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa
incerta, certa
para onde quer que eu vire
o caminho é o poema
é uma linha lenta sempre recta, sempre certa, incerta
para onde quer que se vire
o caminho é como o poema,
ainda não existe
por isso no bolso trago apenas a moeda de Heisenberg
com o saldo da minha vida
de um lado crédito
do outro dívida
uma linha lenta
sempre recta, incerta
uma linha lenta sempre recta, incerta
de um lado crédito, do outro dívida
saberei quanto pagar?

José Anjos in “Manual de instruções para desaparecer”

Junto à água. Manuel António Pina

Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

               Manuel António Pina, Um sítio onde pousar a cabeça

imagem aqui

Alegremente no autocarro. António Gedeão

As crianças tristes passam alegres no autocarro,
cantando em altos berros e intrometendo-se com quem passa.
Vão todas ao Posto vacinar-se de graça.
A vacina é triste, as crianças são tristes,
mas passam todas, alegremente, no autocarro.

Os soldados tristes passam alegres no autocarro,
entoando as canções que cantavam nas romarias da sua terra.
Vão para o cais do embarque tomar o paquete que os levará para a guerra.
A guerra é triste, os soldados são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os operários tristes passam alegremente no autocarro,
cantando e gesticulando com a garrafa de vinho na mão.
Vão todos para a fábrica vigiar as máquinas e carregar num botão.
A fábrica é triste, os operários são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Os camponeses tristes passam alegres no autocarro,
cantando e dando vivas ao longo do percurso.
Vão todos à cidade, de fato novo, aplaudir o discurso.
O discurso é triste, os camponeses são tristes,
mas passam todos, alegremente, no autocarro.

Alegremente, no autocarro.

                                            António Gedeão, Obra Completa

Mélodies en Courts, Jean-Charles Debroize

De que serve a bondade. Bertold Brecht

1

De que serve a bondade

Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos

Aqueles para quem foram bondosos?

De que serve a liberdade

Quando os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão

Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?

2

Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos

Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;

A faça supérflua!

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos

Por criar uma situação que a todos liberte

E também o amor da liberdade

Faça supérfluo!

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos

Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos

Um mau negócio!

Bertold Brecht, Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas

Quando. Maria Virginia Monteiro

 

                               (..)  quando os bosques

                                        e os espaços se fundirem (…) 

                                                António Carlos Cheinho 

quando eu não for

nem voz nem sombra

nem rir nem dor

não recusem de mim restos escolhos

nas coisas que amei

mas que guardei

como se nelas queimasse

mãos e olhos


se me deixarem ficar

eu ficarei

silenciosa ao vosso lado

e assim talvez

as coisas por mim falem

através

de fronteiras de outro espaço

alcançado


do que soube

do que calei

espalhe-se o segredo, dantes meu

arranque-se de sobre ele

qualquer véu

e não mais se cale

o mudo grito


libertem-se gavetas

do silêncio

porque pago foi já o preço alto

e sereno, sem raiva, sem sobressalto

o silêncio o som aflito

quer ser voz

como um eco de lembranças

voz inteira

dos espaços da portagem

na fronteira

dos caminhos de mim

de ti

de nós

Maria Virginia Monteiro Precário Registo (2003)

trazido daqui

O poema ensina a cair. Luiza Neto Jorge

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge

Poeta no supermercado. Fernando Assis Pacheco

1
Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.

Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte…
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

Fernando Assis Pacheco. Cuidar dos Vivos (1963)

aqui Bell Rock Lighthouse – J.M.W. Turner

Precisão

O que me tranquiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.
O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.
O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.
Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.


Clarice Lispector

imagem aqui

Ano Novo. Ferreira Gullar

Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)

Ferreira Gullar

Natal de 1971. Jorge de Sena

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Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma Justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido.
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se.
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé.
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm.
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?

Jorge de Sena

Natal. Vinícius de Moraes

Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados

Para chorar e fazer chorar

Para enterrar os nossos mortos —

Por isso temos braços longos para os adeuses

Mãos para colher o que foi dado

Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:

Uma tarde sempre a esquecer

Uma estrela a se apagar na treva

Um caminho entre dois túmulos —

Por isso precisamos velar

Falar baixo, pisar leve, ver

A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:

Uma canção sobre um berço

Um verso, talvez de amor

Uma prece por quem se vai —

Mas que essa hora não esqueça

E por ela os nossos corações

Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:

Para a esperança no milagre

Para a participação da poesia

Para ver a face da morte —

De repente nunca mais esperaremos…

Hoje a noite é jovem; da morte, apenas

Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes

Não digo do Natal. Pedro Tamen

Não digo do Natal – digo da nata
do tempo que se coalha com o frio
e nos fica branquíssima e exacta
nas mãos que não sabem de que cio

nasceu esta semente; mas que invade
esses tempos relíquidos e pardos
e faz assim que o coração se agrade
de terrenos de pedras e de cardos

por dezembros cobertos. Só então
é que descobre dias de brancura
esta nova pupila, outra visão,

e as cores da terra são feroz loucura
moídas numa só, e feitas pão
com que a vida resiste, e anda, e dura.

Pedro Tamen, in ‘Antologia Poética’

[Pedro e Inês foram vistos na cidade]. Nuno Dempster

Pedro e Inês foram vistos na cidade,
entre autocarros, à hora de ponta.
Estavam num hotel, dizia a rádio.
Imaginei Inês, a luz do corpo
a cintilar na sombra, o outeiro hirsuto
que se erguia das coxas em repouso,
e o sangue, arrefecendo, a descer lento
o delta do seu rio interior.
Porém, disseram que iam a fugir,
deixando para trás a cama e o hotel.
Claro que Afonso IV os procurava,
depois de ter entrado, triunfante,
na cidade onde os bufos denunciam
amantes perigosos para o mundo.

Nuno Dempster

(imagem: ponte pedonal D. Pedro e D. Inês)

Ruínas. Manuel António Pina.

Por onde quer que tenha começado,
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

Manuel António Pina (Como se desenha uma casa, Assírio & Alvim, 2011)

Fado. Maria do Rosário Pedreira.

Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses. As ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.

Maria do Rosário Pedreira

Imagem: The Fellowship by ChristianSchloe

Declaração. José Régio

Teorias são brinquedos
Que, por mim, não tomo a sério.
Tomo a sério os meus enredos.
Crer… só sei crer no Mistério.
De doutrinas não me importo!
Sinto-me bem no mar alto.
Só me recolho ao meu porto.
Convidam-me, e sempre eu falto.
De escolas, não sou aluno.
Se comunico, é em verso.
Sou muito diverso,
E uno.

José Régio

Imagem. Catherine Chaloux

Um sítio onde pousar a cabeça. Manuel António Pina

Os homens temem as longas viagens,

 os ladrões da estrada, as hospedarias,

 e temem morrer em frios leitos

 e ter sepultura em terra estranha.

 Por isso os seus passos os levam

 de regresso a casa, às veredas da infância,

 ao velho portão em ruínas, à poeira

 das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em

 desolados quartos de hotel

 esperei em vão que me batesses à porta,

 voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,

 sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,

 e no meio das multidões dos aeroportos.

 Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.

 À minha volta estilhaça-se

 o meu rosto em infinitos espelhos

 e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.

 Anoitece em todas as cidades do mundo,

 acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos

 onde o meu coração, falando, vagueia.

Manuel António Pina

A impossível sarça. Ana Luísa Amaral.

 
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
 
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita        abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
 
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
 
que não chegam
– mas cegam
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011