Eis-me Tendo-me despido de todos os meus mantos Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses Para ficar sozinha ante o silêncio Ante o silêncio e o esplendor da tua face Mas tu és de todos os ausentes o ausente Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras E o teu encontro São planícies e planícies de silêncio Escura é a noite Escura e transparente Mas o teu rosto está para além do tempo opaco E eu não habito os jardins do teu silêncio Porque tu és de todos os ausentes o ausente
És a terra e a morte. A tua estação é a obscuridade e o silêncio. Não existe nada que, mais que tu, esteja tão longe da luz. Quando pareces acordar és somente dor, ela está nos teus olhos e no teu sangue mas não a sentes. Vives como vive uma pedra, como a terra dura. E cobrem-te sonhos, movimentos, queixas, que ignoras. A dor, como a água de um lago, treme e cerca-te. Há círculos na água. Tu deixas que eles desvaneçam. És a terra e a morte.
luz de março à proa de um sorriso, nem a gloriosa ascensão do trigo,a seda de uma andorinha roçando o ombro nu, o pequeno e solitário rio adormecido na garganta;não, nem o cheiro acidulado e bom do corpo depois do amor, pelas ruas a caminho do mar, ou o despenhado silêncio
da pequena praça, como um barco, o sorriso à proa;
O pensamento é triste; o amor insuficiente; e eu quero sempre mais do que vem nos milagres. Deixo que a terra me sustente guardo o resto para mais tarde. Deus não fala comigo – e eu sei que me conhece. A antigos ventos dei as lágrimas que tinha. A estrela sobe, a estrela desce … – espero a minha própria vinda. (Navego pela memória sem margens. Alguém conta a minha história E alguém mata os personagens.)
É costume atirá-las sobre o medo. Dizê-las sem pudor sobre o palco da noite com grandes gestos gritos e lágrimas. Com elas percorremos os oblíquos caminhos que a solidão conhece. Com elas ardilosos enganamos a alma.
Mas são as outras as claras as fugazes as tímidas as doces as pequenas palavras que salvam os amantes.
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. Grandes são os desertos, minha alma! Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida, Errei a porta do sentimento, Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. Hoje não me resta, em vésperas de viagem, Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) Senão saber isto: Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) Acendo o cigarro para adiar a viagem, Para adiar todas as viagens. Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade! Basta por hoje, gentes! Adia-te, presente absoluto! Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar mala, Tenho por força que arrumar a mala, A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser. Tenho que existir a arrumar malas. A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. Olho para o lado, verifico que estou a dormir. Sei só que tenho que arrumar a mala, E que os desertos são grandes e tudo é deserto, E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares. Vou definitivamente arrumar a mala. Arre, hei de arrumá-la e fechá-la; Hei de vê-la levar de aqui, Hei de existir independentemente dela. Grandes são os desertos e tudo é deserto, Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! Mais vale arrumar a mala. Fim.
Não sou a areia onde se desenha um par de asas ou grades diante de uma janela. Não sou apenas a pedra que rola nas marés do mundo, em cada praia renascendo outra. Sou a orelha encostada na concha da vida, sou construção e desmoronamento, servo e senhor, e sou mistério A quatro mãos escrevemos este roteiro para o palco de meu tempo: o meu destino e eu. Nem sempre estamos afinados, nem sempre nos levamos a sério.
Meus amigos sou de vidro Sou de vidro escurecido Encubro a luz que me habita Não por ser feia ou bonita Mas por ter assim nascido Sou de vidro escurecido Mas por ter assim nascido Não me atinjam não me toquem Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido Tenho fumo por vestido E um cinto de escuridão Mas trago a transparência Envolvida no que digo Meus amigos sou de vidro Por isso não me maltratem Não me quebrem não me partam Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido Mas por assim ter nascido Não por ser feia ou bonita Envolvida no que digo Encubro a luz que me habita
Meus amigos sou de vidro Sou de vidro escurecido Encubro a luz que me habita Não por ser feia ou bonita Mas por ter assim nascido Sou de vidro escurecido Mas por ter assim nascido Não me atinjam não me toquem Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido Tenho fumo por vestido E um cinto de escuridão Mas trago a transparência Envolvida no que digo Meus amigos sou de vidro Por isso não me maltratem Não me quebrem não me partam Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido Mas por assim ter nascido Não por ser feia ou bonita Envolvida no que digo Encubro a luz que me habita
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mão à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro! Era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes! e eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, no tempo em que o teu corpo era um aquário, no tempo em que os meus olhos eram peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor…, já se não passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração. Não temos já nada para dar. Dentro de ti não há nada que me peça água. O passado é inútil como um trapo. E já te disse: as palavras estão gastas. Adeus.
Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili, que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.
Quando o mistério chegar, já vai me encontrar dormindo, metade dando pro sábado, outra metade, domingo. Não haja som nem silêncio, quando o mistério aumentar. Silêncio é coisa sem senso, não cesso de observar. Mistério, algo que, penso, mais tempo, menos lugar. Quando o mistério voltar, meu sono esteja tão solto, nem haja susto no mundo que possa me sustentar.
Meia-noite, livro aberto. Mariposas e mosquitos pousam no texto incerto. Seria o branco da folha, luz que parece objeto? Quem sabe o cheiro do preto, que cai ali como um resto? Ou seria que os insetos descobriram parentesco com as letras do alfabeto?
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
A tolerância exige a reciprocidade. «Tenho tão presente a grande dor» (Camões).
Um celerado pénis um torso a clavícula parva de argumento, nele o monopólio não intimava, voga numa carapaça de trégua e linho fluvial, em brejo de polimento. Inculcaria turgidez a um impotente.
Melros em voo rasante. A ilharga na polpa de cada dedo. O meu rancor prega nele uma herança de alevanto. Um adeus insensato no índice da ternura.
joaquim manuel magalhães canoagem relógio d´água 2021
Além de fornalhas, a noite também pode ser um cadeirão onde repouso, revolvendo na boca os caroços do tempo como rebuçados de mentol,
sentado de perfil contra a luz fria que vem pela janela, comparável a um peixe que, sequestrado num charco, espera libertar-se assim que venham águas novas de Novembro.
a. m. pires cabral a noite em que a noite ardeu cotovia 2015
Engoli água. Profundamente: – a água estancada no ar. Uma estrela materna. E estou aqui devorado pelo meu soluço, leve da minha cara. O copo feito estrela. A água com tanta força no copo. Tenho as unhas negras. Agarro nesse copo, bebo por essa estrela. Sou inocente, vago, fremente, potente, tumefacto. A iluminação que a água parada faz em mim das mãos à boca. Entro nos sítios amplos. – O poder de reluzir em mim um alimento ignoto; a cara se a roça a mão sombria, acima da camisa inchada pelo sangue, abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli água. A mãe e a criança demoníaca estavam sentados na pedra vermelha. Engoli água profunda.
Herberto Helder, in “A faca não corta o fogo” assírio & alvim, 2008
Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilónia, tantas vezes destruida, Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas Da Lima Dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde Foram os seus pedreiros? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio Sò tinha palácios Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida Na noite em que o mar a engoliu Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Indias Sózinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha Chorou. E ninguém mais? Frederico II ganhou a guerra dos sete anos Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitòria. Quem cozinhava os festins? Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas?
Tantas histórias Quantas perguntas
DIFICULDADE DE GOVERNAR
Dificuldade de Governar1. Todos os dias os ministros dizem ao povo Como é difícil governar. Sem os ministros O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol Sem a autorização do Führer? Não é nada provável e se o fosse Ele nasceria por certo fora do lugar.
2. E também difícil, ao que nos é dito, Dirigir uma fábrica. Sem o patrão As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem. Se algures fizessem um arado Ele nunca chegaria ao campo sem As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem, De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que Seria da propriedade rural sem o proprietário rural? Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.
3. Se governar fosse fácil Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer. Se o operário soubesse usar a sua máquina E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários. E só porque toda a gente é tão estúpida Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
4. Ou será que Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira São coisas que custam a aprender?
Risquei o último fósforo e estou agora vazia, não esperando sequer o deserto. Posso de novo sublinhar os livros sem pensar noutros olhos, numa vontade que não coincida; como quem se despe de portas abertas, luzes acesas, buracos na roupa, indiferente ao desejo de vizinhos e espelhos.
Sou finalmente o único fantasma da minha vida inteira.
Inês Dias, in “Um raio ardende e paredes frias” averno, 2013
Começar, recomeçar, interminamente repetir um monótono romance, o romance da minha vida. Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in- sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver… Andar como os dementes pelos cantos a repisar o que já ninguém quer ouvir. Levar o meu desprecioso tempo à deriva. Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer esperança, por desfastio. Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã- mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas e das conclusões. Monotonamente, monotonamente.
Monotonia. Arte, vida… Não serei ainda eu que te erigirei o merecido altar. Que te manejarei hábil e serena. Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente. Sino de poucos tons, impressionante. Mas se te descobri não te vou renegar. Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade, a pobreza e a constância. Monotonia, torna-me desinteressada.
In Um Dia e outro Dia… Outono Havias de Vir Latente, Triste
Por mais que nos doa a vida nunca se perca a esperança; a falta de confiança só da morte é conhecida. Se a lágrimas for cumprida a sorte, sentindo-a bem, vereis que todo o mal vem achar remédio na vida. E pois que outro preço tem depois do mal a bonança, nunca se perca a esperança enquanto a morte não vem.
Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima – eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros ao lado do espaço e o coração é uma semente inventada em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia, tu arrebatas os caminhos da minha solidão como se toda a casa ardesse pousada na noite. – E então não sei o que dizer junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. Quando as crianças acordam nas luas espantadas que às vezes se despenham no meio do tempo – não sei como dizer-te que a pureza, dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto correr do espaço – e penso que vou dizer algo cheio de razão, mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios, sinto que me faltam um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer coisa extraordinária. Porque não sei como dizer-te sem milagres que dentro de mim é o sol, o fruto, a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor, que te procuram.
1 Aceita o transitório; nada do que é definitivo, dura, te pode atingir 2 Algo de visível perpassa nos limites do ser. 3 De noite, o vento partiu um dos vidros das traseiras. 4 Só o ruído da noite sobrevive à luz e ao furor matinais. 5 (Se aquelas nuvens, no horizonte, chegassem até mim…) 6 O fragmento, porém, exprime o estilhaçar da intensidade. 7 No último fragmento, fixa o efémero e repousa.
Comigo me desavim, sou posto em todo perigo; não posso viver comigo nem posso fugir de mim. Com dor, da gente fugia, antes que esta assi crecesse; agora já fugiria de mim, se de mim pudesse. Que meo espero ou que fim do vão trabalho que sigo, pois que trago a mim comigo, tamanho imigo de mim?
Sou barco de vela e remo sou vagabundo do mar. Não tenho escala marcada nem hora para chegar: é tudo conforme o vento, tudo conforme a maré… Muitas vezes acontece largar o rumo tomado da praia para onde ia… Foi o vento que virou? foi o mar que enraiveceu e não há porto de abrigo? ou foi a minha vontade de vagabundo do mar? Sei lá. Fosse o que fosse não tenho rota marcada ando ao sabor da maré. É por isso, meus amigos, que a tempestade da Vida me apanhou no alto mar. E agora queira ou não queira, cara alegre e braço forte: estou no meu posto a lutar! Se for ao fundo acabou-se. Estas coisas acontecem aos vagabundos do mar.
Escrever um poema é como apanhar um peixe com as mãos nunca pesquei assim um peixe mas posso falar assim sei que nem tudo o que vem às mãos é peixe o peixe debate-se tenta escapar-se escapa-se eu persisto luto corpo a corpo com o peixe ou morremos os dois ou nos salvamos os dois tenho de estar atenta tenho medo de não chegar ao fim é uma questão de vida ou de morte quando chego ao fim descubro que precisei de apanhar o peixe para me livrar do peixe livro-me do peixe com o alívio que não sei dizer
Risquei o último fósforo e estou agora vazia, não esperando sequer o deserto. Posso de novo sublinhar os livros sem pensar noutros olhos, numa vontade que não coincida; como quem se despe de portas abertas, luzes acesas, buracos na roupa, indiferente ao desejo de vizinhos e espelhos.
Sou finalmente o único fantasma da minha vida inteira.
Inês Dias, in “Um raio ardende e paredes frias”, Averno, 2013
Como o dia estivesse muito quente as mulheres saíram de casa e foram à sua vida com blusas sem mangas. A carne dos seus braços erguidos ao alto para alcançarem as argolas do autocarro
eram veios de luz voluptuosa e cálida. Apelo de escultor que esculpe trauteando melodias. Iam todas afogueadas de calor, de calor feminino, e por isso eram largas as cavas das suas blusas e delas emergiam os braços levantados para alcançarem no alto as argolas do autocarro.
Era com aqueles braços nus, desprendidos das argolas do autocarro, que aquelas mulheres na hora permitida, cingiam e apertavam os corpos horizontais dos seus companheiros.
Mas não era nisso que elas iam a pensar. Elas iam a pensar no seu trabalho quotidiano, no ir e vir, no andar a correr, no cozinhar, nas compras, no emprego, no dinheiro que não chega, e pensavam, com os olhos parados e distantes, enquanto se agarravam às argolas do autocarro, noutra vida melhor, sem ir e vir, sem andar a correr, sem horas para isto e para aquilo, livres, livres, livres e independentes, para então cingirem e apertarem nos seus braços nus os corpos horizontais dos seus companheiros.
Os novos campos de extermínio são servidos ao jantar pelos canais noticiosos. A cólera e a malária entre Goma e Munigi acometem-nos na impotência e no remorso da toalha, cientes que ficamos da desidratação e dos dejectos e da dificuldade de encontrar a veia num moribundo. No sofá do nosso apartamento passamos às posições dos sérvios na Bósnia e lateja-nos nos ouvidos o efeito da limpeza étnica, ao som familiar e eficaz da nossa máquina de lavar louça.
Este poema é absolutamente desnecessário pela simples razão de que poderia nunca ser escrito e ninguém sentiria a sua falta Esta é a sua liberdade negativa a sua vacuidade dinâmica e o movimento da sua abolição a partir do seu vazio inicial Mas qual é a sua matéria qual o seu horizonte? Traçará ele uma linha em torno da sua nulidade e fechar-se-á como uma concha de cabelos ou como um útero do nada? Ou será a possibilidade extrema de uma presença inesperada que surgiria quando chegasse a essa fronteira branca que já não separaria o ser do nada e no seu esplendor absoluto revelaria a integridade do ser antes de todas as imagens a sua violência inaugural a sua volúvel gestação?
António Ramos Rosa Deambulações Oblíquas. Quetzal, 2001.
Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos Porque tinha uma mulher no pensamento Sei que os lavava como se os contasse Sei que os enxugava com a luz da mulher Com os seus olhos muito claros voltados para o centro Do amor, na operação poderosa Do amor Sei que cortava os cabelos para procurá-la Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava O cabelo no seu sangue Na água corrente Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir E a mulher cantava para o homem respirar.
Homens que são como lugares mal situados Homens que são como casas saqueadas Que são como sítios fora dos mapas Como pedras fora do chão Como crianças órfãs Homens sem fuso horário Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas Que são como caminhos barricados Homens que querem passar pelos atalhos sufocados Homens sulfatados por todos os destinos Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias Que são como os esconderijos dos contrabandistas Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis Homens que são sobreviventes vivos Homens que são como sítios desviados Do lugar