Categoria: Inês Lourenço

Eficácia. Inês Lourenço

Os novos campos de extermínio
são servidos ao jantar
pelos canais noticiosos. A cólera
e a malária entre Goma e Munigi
acometem-nos na impotência e no remorso
da toalha, cientes que ficamos
da desidratação e dos dejectos
e da dificuldade de encontrar a veia
num moribundo. No sofá do nosso apartamento
passamos às posições dos sérvios
na Bósnia e lateja-nos nos ouvidos
o efeito da limpeza étnica,
ao som familiar e eficaz
da nossa máquina de lavar louça.

Inês Lourenço, in  Os Pecados Predilectos

Neo-Bucólica. Inês Lourenço


Que bem luzem nos discursos
da boa consciência
onanista e nos poemas light dos
neo-bucólicos as casinhas
com papás, vovós e manos, talvez
com uma sentida perda
de um talher à mesa e uma
horta, couves, alfaces, a doméstica
economia dos quintalórios
com um cão cativo a ladrar
à sina e à honestidade das batatas
que as mães ou avós ainda esmagam
na sopa com uns pingos de azeite e
enfado. Pequeno país do
gasóleo e do futebol, memórias
de mercados e feiras buliçosas,
de escolinhas rústicas, agora desertas,
com a cruz e os presidentes na parede,
pequeno país de bravia
palavra, sofrida crueza
de mato ardido e estrumes, sucatas,
detritos, o hábito endurecido dos
pequenos holocaustos
diários.

Inês Lourenço. “Logros Consentidos”.
Lisboa, &Etc, 2005, p. 19

Os livros. Inês Lourenço

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Os livros duram séculos e
falam da melodia da chuva,
dos rios e dos mares, das fontes,
dos húmidos beijos dos
amantes, mas também

morrem despedaçados num
qualquer temporal que parte
as vidraças e lhes tolhe as páginas
numa brutal invasão líquida.

E falam do fogo
das paixões, de estrelas
a arder no infinito,
mas o convívio das chamas
é-lhes vedado, apesar
da torpe ignorância,
a isso os ter condenado
tantas vezes.

Quantos naufrágios e incêndios
os destruiram, para depois
ressurgirem múltiplos,
audazes, amigos tão antigos e
tão novos.

Inês Lourenço
(in Coisas que nunca)
(trazido de Poema possível)