Categoria: José Tolentino Mendonça

A casa onde às vezes regresso. José Tolentino Mendonça

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça

foto Birtsmorton Court

Concerto dos Tindersticks. José Tolentino Mendonça

AUaKRmLM janela em Tiradentes_Minas Gerais_Brasil.jpg

 

Impossível dizer até que ponto

a rapidez de tudo

atinge as paisagens na sua certeza

o significado dos instintos

desde muito cedo

os modos de travessia, os receios

imagens em que não pensamos

 

pela noite tua voz descreve

isso de nós que não tem defesa

um amor

largado às sombras, irreconhecível

até de perto

 

dizem que se tratou de

derivas, ingenuidades, ilusões

o teu amor é um nome qualquer

que parte

 

José Tolentino Mendonça

in Pequenas Paixões, Baldios, 1999

Fonte: “Porque é Poesia” [este poema  decorreu de uma troca coletiva, em que se foram enviando e recebendo poemas por email, a que o remetente atribuiu significado; na qualidade de destinatária, também me pareceu relevante partilhá-los]

Do que me lembro. J. Tolentino Mendonça

Collage conchas2

Lembro-me da música dos lugares a oeste
dos planos para esse reino amado
que pretendemos tanto tomar de assalto
antes dos brados do fogo

Mas as minhas mãos traziam já
uma sina mais escura, nem a noite

Qualquer penumbra serviu
ao meu coração oculto
a miséria do inverno
o treino dos falcões nas escarpas
a glória iludida
em que se consumiu o tempo

José Tolentino Mendonça
A noite abre meus olhos [poesia reunida], 3.ª edição, Assírio & Alvim, Lisboa, 2014.

Side of the road. José Tolentino Mendonça

IMG_1836

Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos

minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender

as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores

tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos

José Tolentino Mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005

A casa onde às vezes regresso. José Tolentino Mendonça

rodin_thinker 1

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem que se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem que se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça. A noite abre meus olhos.

Uma coisa inocente. José Tolentino Mendonça

IMG_1820

 

Estendi a mão por qualquer coisa inocente
uma pedra, um fio de erva, um milagre
preciso que me digas agora
uma coisa inocente

Não uses palavras
qualquer palavra que me digas há-de doer
pelo menos mil anos
não te prepares, não desejes os detalhes
preciso que docemente o vento
o longínquo e o próximo
espalhe o amor que não teme

Não uses palavras
se me segredas
aquilo que no fundo das nossas mentiras
se tornou uma verdade sublime

José Tolentino Mendonça

Esplanadas. José Tolentino Mendonça

apanhador-de-sonhos
Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo
por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria
josé tolentino mendonça
a que distância deixaste o coração
assírio & alvim
1998

Murmúrios do mar. José Tolentino Mendonça

waves_rocks2

«Paga-me um café e conto-te

a minha vida»

o inverno avançava

nessa tarde em que te ouvi

assaltado por dores

o céu quebrava-se aos disparos

de uma criança muito assustada

que corria

o vento batia-lhe no rosto com violência

a infância inteira

disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa

com frio e medo

apagavas cigarros nas palmas das mãos

e os que te viam choravam

mas tu, não, nunca choraste

por amores que se perdem

os naufrágios são belos

sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?

E temos saudades desse mar

que derruba primeiro no nosso corpo

tudo o que seremos depois

«Pago-te um café se me contares

o teu amor»

 

José Tolentino Mendonça

Do que me lembro, José Tolentino Mendonça

butterfly 88

Lembro-me da música dos lugares a oeste
dos planos para esse reino amado
que pretendemos tanto tomar de assalto
antes dos brados do fogo

Mas as minhas mãos traziam já
uma sina mais escura, nem a noite

Qualquer penumbra serviu
ao meu coração oculto
a miséria do Inverno
o treino dos falcões nas escarpas
a glória iludida
em que se consumiu o tempo

José Tolentino Mendonça

(in «Longe não sabia», Presença)

Revelação, José Tolentino Mendonça

IMG_3596

Meu ofício incerto das palavras
a evocação do tempo
o recurso ao fogo

Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância

Meus são os dedos que em tumulto
modelam capitéis
de sombras e arestas

Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes

José Tolentino Mendonça