Categoria: Gonçalo M. Tavares

O livro. Gonçalo M.Tavares

De manhã, quando passei à frente da loja
o cão ladrou
e só não me atacou com raiva porque a corrente de ferro
o impediu.
Ao fim da tarde,
depois de ler em voz baixa poemas numa cadeira preguiçosa do
jardim
regressei pelo mesmo caminho
e o cão não me ladrou porque estava morto,
e as moscas e o ar já haviam percebido
a diferença entre um cadáver e o sono.
Ensinam-me a piedade e a compaixão
mas que posso fazer se tenho um corpo?
A minha primeira imagem foi pensar em
pontapeá-lo, a ele e às moscas, e gritar:
Venci-te.
Continuei o caminho,
o livro de poesia debaixo do braço.
Só mais tarde pensei ao entrar em casa:
não deve ser bom ter ainda a corrente
de ferro em redor do pescoço
depois de morto.
E ao sentir a minha memória lembrar-se do coração,
esbocei um sorriso, satisfeito.
Esta alegria foi momentânea,
olhei à volta:
tinha perdido o livro de poesia.

 

Gonçalo M.Tavares

(imagem bookart de Ekaterina Panikanova)

Palavras, actos. Gonçalo M. Tavares

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A ironia ensina a sabotar uma frase

Como se faz a um motor de automóvel:

Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres

No verbo ou numa letra do substantivo

A frase trágica torna-se divertida,

E a divertida, trágica.

Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,

Desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar

A linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo

Portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita

Aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida

Comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero

Envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

Gonçalo M. Tavares,

O mapa. Gonçalo M. Tavares

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Sempre senti a matemática como uma presença

Física; em relação a ela vejo-me

Como alguém que não consegue

Esquecer o pulso porque vestiu uma camisa demasiado

Apertada nas mangas.

Perdoem-me a imagem: como

Num bar de putas onde se vai beber uma cerveja

E provocar com a nossa indiferença o desejo

Interesseiro das mulheres, a matemática é isto: um

Mundo onde entro para me sentir excluído;

Para perceber, no fundo, que a linguagem, em relação

Aos números e aos seus cálculos, é um sistema,

Ao mesmo tempo, milionário e pedinte. Escrever

Não é mais inteligente que resolver uma equação;

Porque optei por escrever?Não sei. Ou talvez saiba:

Entre a possibilidade de acertar muito, existente

Na matemática, e a possibilidade de errar muito,

Que existe na escrita (errar de errância, de caminhar

Mais ou menos sem meta) optei instintivamente

Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.

 

Gonçalo M. Tavares

 

O sol. Gonçalo M. Tavares

janeiro2005 004

Na infância o sol era um companheiro mais alto,
que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
que os meninos agarravam com os dedos e cuja
intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
o corpo parecia a conclusão
natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
uma frase. Fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
me fui distraindo?

Gonçalo M. Tavares