Mês: Setembro 2020

esta mão que escreve a ardente melancolia. Herberto Helder

(a carta da paixão)
Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.
herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002
trazido do Canal de Poesia
Foto: A8, área de serviço de Torres Vedras

Os primeiros encontros. Arsenii Tarkovskii

cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.

Arsenii Tarkovskii

8 ìcones
assírio & alvim
1987

Quem muito viu. Jorge de Sena

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi

– não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

Jorge de Sena

Fidelidade. Blas de Otero

Creio no homem. Já vi

dorsos despedaçados a chicote,

almas cegas avançando aos saltos

(espanhas a cavalo

de fome e sofrimento). E acreditei.

 

Creio na paz. Já vi

altas estrelas, recintos chamejantes

a amanhecentes, incendiando rios

fundos, caudal humano

para outra luz: vi e acreditei.

 

Creio em ti, pátria. Digo

o que já vi: relâmpagos

de raiva, amor em frio e uma faca

chiando, fazendo-se em pedaços

de pão: embora hoje só haja sombra, vi

e acreditei.

 

blas de otero

antologia da poesia espanhola contemporânea

selecção e tradução de josé bento

assírio & alvim

1985

A pedra no caminho. Rui Knopfli

Toma essa pedra em tua mão,

toma esse poliedro imperfeito,

duro e poeirento. Aperta em

tua mão esse objecto frio,

redondo aqui, acolá acerado.

Segura com força esse granito

bruto. Uma pedra, uma arma

em tua mão. Uma coisa inócua,

todavia poderosa, tensa,

em sua coesão molecular,

em suas linhas irregulares.

Ao meio-dia em ponto, na avenida

ensolarada, tu és um homem

um pouco diferente. Ao meio-dia

na avenida tu és um homem

segurando uma pedra. Segurando-a

com amor e raiva.

 

rui knopfly

reino submarino

1962

Não sei se respondo ou se pergunto. António Ramos Rosa

Não sei se respondo ou se pergunto.

Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.

Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

 

António Ramos Rosa

O tímpano e a pupila. Luís Miguel Nava

um dos pratos o mar, no outro um rio, agora

que o tempo se desossa,

que as pedras

que piso se me enterram na memória e os caminhos

 

se me aguçam na alma como lâminas, o pão

molhado nas feridas,

o pão

ele próprio já também uma ferida, agora

 

que o tempo, que já tanto

compararam a um rio, mais

não é do que uma leve exsudação nos muros,

nas mãos, agora

 

que o céu se encrespa e que pedaços

de mundo arremessados

com toda a força aos olhos revolteiam

na treva antes de se extinguirem,

 

mais magro do que a neve

caminho, a alma aberta como uma ferida,

ao longo da memória, onde se fundem

o tímpano e a pupila.

 

luís miguel nava

poesia completa (1979-1994)

publicações dom quixote

2002

Gritarás o meu nome. Rui Knopffli

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz será
como a do vento sobre a areia:
um som inútil de encontro ao silêncio.

Não responderei ao teu apelo,
embora ardentemente o deseje.
O lugar onde moro é um obscuro
lugar de pedra e mudez:

não há palavras que o alcancem.
gelam-lhe os gritos por fora.
Serei como as areias que escutam
o vento e apenas estremecem.

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz ouvirá
o próprio som sem entender,
como o vento, o beijo da areia.

Teu grito encontrará somente
a angústia do grito ampliado,
vento e areia. Gritarás o meu
nome em ruas desertas.

Rui Knopfli, Memória Consentida

Sei agora como nasceu a alegria. Eugénio de Andrade

Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,

como nasce a água ou o amor

quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma

à roda do corpo que desperta,

sílaba espessa, beijo acumulado,

amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,

um grito apertado nos dentes,

galope de cavalos num horizonte

onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.

De coisas que te dou

para que tu as ames comigo:

a juventude, o vento e as areias.

 

Eugénio de Andrade

Não se aprende grande coisa com a idade. Eugénio de Andrade

Não se aprende grande coisa com a idade.

Talvez a ser mais simples,

a escrever com menos adjectivos.

Demoro-me a escutar um rumor.

Pode ser o prelúdio tímido ainda

do cantar de um pássaro, uma gota

de água na torneira mal fechada,

a anunciação do tão amado

aroma dos primeiros lilazes.

Seja o que for, é o que me retém

aqui, me sustenta, impede de ser

uma qualquer vibração da cal,

simples acorde solar, um nó

de luz negra prestes a explodir.

 

Eugénio de Andrade