Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem Enquanto vivas distinguem-se umas das outras distinguem-se designadamente pelo cheiro variam até de sala pra sala As casas que eu fazia em pequeno onde estarei eu hoje em pequeno? Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco? Terei eu casa onde reter tudo isto ou serei sempre somente esta instabilidade? As casas essas parecem estáveis mas são tão frágeis as pobres casas Oh as casas as casas as casas mudas testemunhas da vida elas morrem não só ao ser demolidas Elas morrem com a morte das pessoas As casas de fora olham-nos pelas janelas Não sabem nada de casas os construtores os senhorios os procuradores Os ricos vivem nos seus palácios mas a casa dos pobres é todo o mundo os pobres sim têm o conhecimento das casas os pobres esses conhecem tudo Eu amei as casas os recantos das casas Visitei casas apalpei casas Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade Sem casas não haveria ruas as ruas onde passamos pelos outros mas passamos principalmente por nós Na casa nasci e hei-de morrer na casa sofri convivi amei na casa atravessei as estações Respirei – ó vida simples problema de respiração Oh as casas as casas as casas Ruy Belo Todos os Poemas Lisboa, Assírio & Alvim, 2000 |
Mês: Janeiro 2016
Prova da existência da alma. Rosa Alice Branco
Deixaste a ressurreição a meio.
Não me lembro de nada tão incompleto como ela.
O meu director fala de objectivos, fazemos mapas
e somos despedidos se. Ou temos prémios
e corrupção. Haja alguma arte em tudo isto.
Senhor, o teu corpo está seco na gaveta.
Estás no meio de nós coberto de bolor.
Nas palavras de São Paulo a criação teve parto e dores
em relação. Um prelúdio, sabemos hoje, prelúdio
sem mais nada. Os animais não aspiram à eternidade.
Nisto deveria consistir a alma que lhes foi negada.
Por menos despediria eu um empregado.
O meu cão brinca a que eu sou o cão dele.
Atira-me um osso e corro atrás, todos corremos atrás.
Mas é assim que se sobe na vida porque aspiramos.
Prova provada de que temos alma.
Rosa Alice Branco
Soletrar o Dia, Quasi Edições, 2002
O que mais amo. Luís Filipe Parrado
Não sou capaz de estranhas paixões
Caixa de costura. Pedro Mexia

Elogio da vida monástica. Jorge de Sena

Outrora, uma pessoa retirava-se do mundo,
amortalhava-se em vida, fazia-se monge,
ou porque a vida lhe dera tudo e a agonia sobrevinha,
ou porque desistia de lutar com ela pelo que não vinha nunca
(nem mesmo sob a forma de agonia que facilitasse as coisas).
Depois, porque o espírito precisa de ocupar-se,
a pessoa tratava de salvar a própria alma,
de mortificar o corpo, e preparava-se para a morte
(um acidente para que só pelo acaso feliz de ter nascido,
uma pessoa, naquele tempo sem recurso algum,
estava, por estar viva, sempre preparada).
Era uma aposentadoria honrosa, olhada com respeito,
e que não podia deixar de encher a solidão
como gente e amor não tinham preenchido a vida.
Era um estar só, rodeado de calor humano,
sem os inconvenientes e a incomodidade
que o convívio humano traz consigo,
desde os sentimentos a mais aos sentidos a menos,
ou ao facto lamentável de quem amamos não cheirar
como quereríamos: a um misto de rosas e de sexo,
com alguma imaginação de como o amor cheira.
Hoje, não há mais mundo
de que uma pessoa possa retirar-se.
O mundo se retirou de nós. E a solidão
é como um convento gigantesco em que,
na rua, nos transportes colectivos, na cama,
olhamos a vizinhança com a mesma convicção
com que os carmelitas descalços ao cruzarem-se no claustro
mutuamente se saudavam dizendo
que era preciso morrer.
Na dor, na alegria, no prazer, em tudo,
somos monges laicos cuja morte sobrevém
de uma qualquer maneira estúpida e sem graça.
E o nosso olhar de espanto não é o de termos sido
colhidos de surpresa antes de estar salva a alma,
mas o de ela estar salva, desde que o mundo
se retirou de nós. É o olhar de espanto do funcionário público
que descobre, ao contarem-lhe o tempo de aposentadoria,
que nunca figurara na folha de pagamento,
nem no quadro dos funcionários efectivos,
ou mesmo sequer nas listas do comissariado
do desemprego. Não tem direito sequer
à agonia que todavia sente como antigamente
era sentida a que justificava tudo:
o prazer de decidir entre duas coisas:
o ir ou o ficar, o estar ou o partir,
O ter-se uma alma que jogar e perder.
Terra natal. Hölderlin
Alegre regressa o marujo ao rio tranquilo,
De longínquas ilhas, quando colheu seu lucro;
Também eu voltaria assim à terra natal, tivesse eu
Tantos bens colhido como dores colhi.
Ribeiras queridas, que outrora me criastes,
Acalmais vós as dores do amor? Prometeis-me vós,
Bosques da minha juventude, se eu
Voltar, mais uma vez repouso?
Junto ao regato fresco, onde vi brincar as ondas,
Junto ao rio, onde vi singrar os barcos,
Em breve eu estarei; a vós, montes amigos
Que outrora me abrigastes, da minha terra
Seguras fronteiras veneradas, à casa materna
E aos abraços dos irmãos amado,
A todos saúdo em breve, e vós me envolvereis,
Que, como em faixas, o coração me sare,
Ó meus fiéis! Mas eu sei, eu sei,
A dor do amor, essa não cura tão breve,
Essa não me afasta do peito
Nenhuma canção de embalo, que mortais cantem.
Porque aqueles que nos dão o fogo celeste,
Os deuses, também nos dão a dor sagrada.
Por isso esta fique. Filho da terra
Pareço eu: feito para amar, para sofrer.
Obras Completas II, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997
tradução de Paulo Quintela
Partir. Maria Teresa Horta
Não sei
se te deixei partir
Mas num segundo
já não estás na minha mão
nem à minha frente no papel
Ficando eu sem saber
quem eras
quando te encontrei
Se o retrato que de ti
tracei te é fiel
Ou se de tanto te inventar
eu te perdi, por entre
as florestas das histórias
Penumbras dos palácios
Pensamentos, poesias e diários
Oceanos e ventos
Pois nem sequer
percebo se por mim
te afastei ou te larguei
Se obstinada fugiste
ou te esqueci
Se a Torre onde te pus é de Babel
E dela partirás
para viver a única
paixão da tua vida
Não, nem sequer sei
qual foi o meu olhar
pousado em ti
Se com ele te espiei
te persegui
E no espelho onde te vias
Eu te olhei
[Maria Teresa Horta, Poemas para Leonor, Dom Quixote, 2012, p. 138-9]